“O ladrão já nasce feito”
Passo a transcrever um brevíssimo diálogo.— Está-se sentindo bem?
— Sinto a consciência, caro senhor. A consciência é o mais cru dos chicotes... O povo precisa fazer anualmente o seu exame de consciência.
— Pelo menos, de quatro em quatro anos, no dia das eleições — eu arrisco de novo.
— Concordo. Sou pela discórdia. Concórdia e pântano são a mesma fonte de miasmas e de mortes.
— Agora mesmo, essa fome no Nordeste... — eu insinuo, desdobrando o jornal.
— Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que um homem fraco pode cair na estrada, se não tiver alguma coisa no estômago.
O ancião curva-se para limpar a boca. Deve ter uns oitenta, penso.
— O jornal diz aqui que o povo está enviando comida para os flagelados.
— A comida não me preocupa. Virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar.
— De qualquer modo o Governo simula acção, pressionado pela opinião pública.
— Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
— Mas os saques? O que o senhor pensa dos saques aos supermercados?
— Não é a ocasião que faz o ladrão; a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito...
— Entendo. O senhor vota em que partido?
— Nenhum. Não me irrito, portanto, se me pagam mal um benefício. Antes cair das nuvens que de um terceiro andar.
— Já sei: o senhor, como muitos brasileiros, perdeu a fé.
— Não é bem assim. Tenho o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.
Machado de Assis. Escritor, 1839/1908
Etiquetas: Ladroagem
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home