Por aí?
Há uns dois anos, para tornar a coisa mais fiável, decidi que o meu voto seria divido em sete partes. Assim, tipo criançola no júri dum concurso, nos temas que me interessam, tenho vindo a preenche-las, imaginando as várias hipóteses de arbítrio, ora assestando a cruz num lado, ora não pondo simplesmente a cruzinha. Mais um jogo, em suma.Depois de assistir a uma interessantíssima entrevista (e respectivos comentários), uma oportunidade para avaliar um compactado de temas políticos, portanto, também a possibilidade de colocar a cruz e perfazer mais uma das cinco partes que faltam para completar o meu voto no PS, digamos que não fiquei nada confiante em relação ao futuro, sabendo, porém, para minha enormíssima tormenta, neste "Cabo das Tormentas", que para o Exmo. PM, qual Vasco da Gama, tanto se lhe deu, como se lhe dá a minha insignificante opinião, sumida entre milhões de opiniões de outros insignificantes populares. E como suspeito das subtis inclinações do meu coração, que atraiçoam os meus miolos – como diria um amigo, que lá terá as suas suspeitas:” ele não parece, mas é de Esquerda” – para não coisificar a crítica, acho que por agora me fico com este poema lindíssimo de José Régio (1901-1969) – pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira – declamado pelo admirável João Villaret, que dá um certo alento nesta conjuntura de desânimo, manifestamente descontrolada.
Cântico negro
Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se às coisas que pergunto em vão ninguém responde
Porque me me dizeis vós: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é quem me guia, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Não me peçam definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, 1925
Nota: claro que seria disparatado sugerir uma remodelação à beira das urnas. Mas como este povo é singular, se calhar a coisa ainda descamba para uma segunda maioria absoluta. Tudo é possível.
Etiquetas: Poesia e Artes, Sócrates
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