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When you lose, don't lose the lesson

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Culturalmente incorrecto...

Vai para uns anos, em Santiago do Chile, eu, portuga, e o um amigo, igualmente portuga, abancámos num restaurante de marisco e outros frutos do mar, dentro de um mercado nauseabundo, mas pitoresco. Esfomeados, pedimos uma de sopa de amêijoa, aquela coisa comestível da família das enfezadas conquilhas.
Regalado, o meu amigo ia sorvendo o caldo com uma respeitável voracidade. Eu, céptico e desconfiado, inalei por várias vezes o fedor da sopa e conclui que os moluscos acéfalos deveriam estar fora do prazo de validade. “Isto está fedorento”, disse-lhe. Ele, o portuga meu amigo, interrompeu o movimento acelerado da colher, que cheirou. E tornou a cheirar. “Também me parece…”, declarou.
O pitoresco caldo foi devolvido e acabámos a comer uns panados de vaca. O pivete, esse, do restaurante e do caldo, manteve-se activo nas narinas durante umas horas. Período de tempo em que me perguntei se no Chile não haveria uma ASAE - Autoridad de la Seguridad Alimenticia y Económica. Aí, sim, resquício dos instrumentos da ditadura, talvez fosse fascista. Desde então, ingénuo, que me tenho vindo a interrogar quanto ao acanhamento deste tipo de fiscalização aqui, à beira mar plantada. E quando vieram as contrafacções, as bolas de Berlim, a ginjinha, o anti-fumo e o charuto provocador no Casino, aí, claro, foi um imenso contento - pedindo, porém a todos os deuses que não se lembrem de higienizar a venda de dvs hardcore.
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Se o assunto não fosse tão sério, avançaria com um abaixo assinado a favor da ASAE, por várias razões consistentes. Considerando o facto desta “força“ estar a ser treinada pela recomendável CIA e pelo SIS, seria, porém, desejável, que não se desbragasse para um “guantanamo“, “sem freio nos dentes“, num secreto monte alentejano ou nas terras do Rio Ota.



Entre muitos argumentos, concordo com esta “autoridade”, porque me agrada precisamente isso, a Autoridade, e esta particularmente, em Democracia - se calhar também sou fascista e ainda ninguém me disse ; segundo, porque fico mais descansado sabendo que alguém se preocupa com a alimentação dos portugueses, dos híbridos e dos turistas - por exemplo, com o dinheiro sujo que abunda por aí ou com as chispalhadas comidas em tascas imundas, num mundo em que uns comem e outros ficam a olhar; terceiro, porque a gaita dos dvds que comprei nas feiras, feito prevaricador e chico esperto, têm metade dos filmes ou, caso mais corrente, estão vazios, o que me levou por várias vezes a desejar que alguém fizesse justiça por mim, chateando alguns feirantes declaradamente vigaristas e marginais e penetrando nalgumas casas de pasto, sobretudo naquelas em que a fragrância da cozinha imunda se sobrepõe ao aroma da comida no prato - coisas pitorescas, em suma, que alguns dão tudo para frequentar. Pela importância da matéria, que divide os portugueses em culturalmente correctos e culturalmente incorrectos entendi que seria atinado destacar um trecho de uma nota do TV, de um diálogo proficiente entre Eduardo Pitta e Tomás Vasques, sendo que não me quero meter na questiúncula entre o Conquilhas e um de Vilarigues, considerando que quando a coisa mete ex-comunistas é sempre delicada - ou mesmo arriscada.

A acrescentar ao tempo e ao modo há outro pormenor: porque tenho memória, não alinho, por princípio, nas soluções repressivas e policiais como base de mudanças de hábitos, usos e costumes. Acredito mais na educação e persuasão. As polícias, muitas vezes, tomam o freio nos dentes, aplicam a lei à sua maneira, são fundamentalistas. E eu não gosto de fundamentalistas. Eu gosto de viver em democracia, com todo o respeito pelos outros, mas numa sociedade de liberdade e não de imposições. E além disso há situações e situações, há regras e regras. Generalizar é o pior que nos pode acontecer.
Tomás Vasques, in Hoje há Conquilhas
Não se trata de respeito e ordem. Trata-se de viver em sociedade com um mínimo de atrito. Se o meu vizinho fizer obras em casa, e tem o direito de as fazer, manda a boa educação que avise os outros do facto. [Quando aconteceu, os que fizeram avisaram: «Das tantas às tantas, de segunda a sexta... pedimos a melhor compreensão, etc.» OK.] Isto nos distingue dos animais. As regras não visam melhorar a vida das elites. As regras tendem a democratizar a vida em sociedade.
Eduardo Pitta, in Da Literatura
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