Culturalmente incorrecto...
Vai para uns anos, em Santiago do Chile, eu, portuga, e o um amigo, igualmente portuga, abancámos num restaurante de marisco e outros frutos do mar, dentro de um mercado nauseabundo, mas pitoresco. Esfomeados, pedimos uma de sopa de amêijoa, aquela coisa comestível da família das enfezadas conquilhas.Regalado, o meu amigo ia sorvendo o caldo com uma respeitável voracidade. Eu, céptico e desconfiado, inalei por várias vezes o fedor da sopa e conclui que os moluscos acéfalos deveriam estar fora do prazo de validade. “Isto está fedorento”, disse-lhe. Ele, o portuga meu amigo, interrompeu o movimento acelerado da colher, que cheirou. E tornou a cheirar. “Também me parece…”, declarou.
O pitoresco caldo foi devolvido e acabámos a comer uns panados de vaca. O pivete, esse, do restaurante e do caldo, manteve-se activo nas narinas durante umas horas. Período de tempo em que me perguntei se no Chile não haveria uma ASAE - Autoridad de la Seguridad Alimenticia y Económica. Aí, sim, resquício dos instrumentos da ditadura, talvez fosse fascista. Desde então, ingénuo, que me tenho vindo a interrogar quanto ao acanhamento deste tipo de fiscalização aqui, à beira mar plantada. E quando vieram as contrafacções, as bolas de Berlim, a ginjinha, o anti-fumo e o charuto provocador no Casino, aí, claro, foi um imenso contento - pedindo, porém a todos os deuses que não se lembrem de higienizar a venda de dvs hardcore.
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Se o assunto não fosse tão sério, avançaria com um abaixo assinado a favor da ASAE, por várias razões consistentes. Considerando o facto desta “força“ estar a ser treinada pela recomendável CIA e pelo SIS, seria, porém, desejável, que não se desbragasse para um “guantanamo“, “sem freio nos dentes“, num secreto monte alentejano ou nas terras do Rio Ota.
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Entre muitos argumentos, concordo com esta “autoridade”, porque me agrada precisamente isso, a Autoridade, e esta particularmente, em Democracia - se calhar também sou fascista e ainda ninguém me disse ; segundo, porque fico mais descansado sabendo que alguém se preocupa com a alimentação dos portugueses, dos híbridos e dos turistas - por exemplo, com o dinheiro sujo que abunda por aí ou com as chispalhadas comidas em tascas imundas, num mundo em que uns comem e outros ficam a olhar; terceiro, porque a gaita dos dvds que comprei nas feiras, feito prevaricador e chico esperto, têm metade dos filmes ou, caso mais corrente, estão vazios, o que me levou por várias vezes a desejar que alguém fizesse justiça por mim, chateando alguns feirantes declaradamente vigaristas e marginais e penetrando nalgumas casas de pasto, sobretudo naquelas em que a fragrância da cozinha imunda se sobrepõe ao aroma da comida no prato - coisas pitorescas, em suma, que alguns dão tudo para frequentar. Pela importância da matéria, que divide os portugueses em culturalmente correctos e culturalmente incorrectos entendi que seria atinado destacar um trecho de uma nota do TV, de um diálogo proficiente entre Eduardo Pitta e Tomás Vasques, sendo que não me quero meter na questiúncula entre o Conquilhas e um de Vilarigues, considerando que quando a coisa mete ex-comunistas é sempre delicada - ou mesmo arriscada.
A acrescentar ao tempo e ao modo há outro pormenor: porque tenho memória, não alinho, por princípio, nas soluções repressivas e policiais como base de mudanças de hábitos, usos e costumes. Acredito mais na educação e persuasão. As polícias, muitas vezes, tomam o freio nos dentes, aplicam a lei à sua maneira, são fundamentalistas. E eu não gosto de fundamentalistas. Eu gosto de viver em democracia, com todo o respeito pelos outros, mas numa sociedade de liberdade e não de imposições. E além disso há situações e situações, há regras e regras. Generalizar é o pior que nos pode acontecer.
Tomás Vasques, in Hoje há Conquilhas
Não se trata de respeito e ordem. Trata-se de viver em sociedade com um mínimo de atrito. Se o meu vizinho fizer obras em casa, e tem o direito de as fazer, manda a boa educação que avise os outros do facto. [Quando aconteceu, os que fizeram avisaram: «Das tantas às tantas, de segunda a sexta... pedimos a melhor compreensão, etc.» OK.] Isto nos distingue dos animais. As regras não visam melhorar a vida das elites. As regras tendem a democratizar a vida em sociedade.
Eduardo Pitta, in Da Literatura
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Etiquetas: ASAE
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